O “Uptober” iniciou-se com força, levando o Bitcoin a novos máximos históricos. Contudo, o otimismo inverteu-se rapidamente com o flash crash de outubro, que minou o sentimento de mercado. Desde então, o BTC desvalorizou cerca de ~40 000 $ (mais de 33%), enquanto as altcoins sofreram ainda mais, reduzindo a capitalização total do mercado para perto dos 3 biliões $. Apesar de um ano marcado por desenvolvimentos fundamentais positivos, a evolução dos preços e o sentimento divergem de forma acentuada.
Os ativos digitais encontram-se atualmente no cruzamento de diversas forças externas e internas. No plano macroeconómico, a incerteza em torno de possíveis cortes de taxas em dezembro e o enfraquecimento recente das tecnológicas acentuaram a aversão ao risco. No universo cripto, canais de procura como ETF e tesourarias de ativos digitais (DAT), que funcionaram como absorvedores estáveis, registaram algumas saídas e pressão sobre o preço de aquisição. Por outro lado, a cascata de liquidações de 10 de outubro, que desencadeou um dos eventos de desalavancagem mais intensos, continua a ter repercussões, uma vez que a liquidez de mercado permanece reduzida.
Nesta edição, analisamos os fatores que têm condicionado a recente fraqueza nos mercados de ativos digitais. Observamos em detalhe os fluxos dos ETF, as condições de alavancagem nos mercados de futuros perpétuos e DeFi, e a liquidez dos livros de ordens, para compreender o que estes movimentos revelam sobre o regime de mercado atual.
O desempenho do Bitcoin tem-se afastado progressivamente das principais classes de ativos. O ouro destacou-se com ganhos superiores a +50% desde o início do ano, impulsionado por compras recorde dos bancos centrais e tensões comerciais persistentes, enquanto as tecnológicas (NASDAQ) perderam dinamismo no quarto trimestre, à medida que os mercados reavaliaram a probabilidade de futuros cortes de taxas pela Fed e a sustentabilidade das valorizações induzidas pela IA.
Como análises anteriores demonstraram, o BTC tende a apresentar uma relação oscilante tanto com as tecnológicas (“risk-on”) como com o ouro (“porto seguro”), ajustando-se ao regime macro predominante. Isto torna-o especialmente sensível a choques ou catalisadores de mercado, como o flash crash de outubro e a recente vaga de sentimento de aversão ao risco.

Fonte: Coin Metrics Reference Rates & Google Finance
O Bitcoin serve de referência para o mercado cripto alargado e a sua correção alastrou a outros ativos, que continuam a acompanhar de perto o BTC, apesar de episódios pontuais de melhor desempenho em temas como privacidade.
A fraqueza recente do Bitcoin resulta, em parte, de uma procura menos robusta dos canais que sustentaram o ativo durante grande parte de 2024 e 2025. Os ETF registam agora saídas líquidas de 4,9 mil milhões $ desde meados de outubro, o maior episódio de resgates desde abril de 2025, quando o BTC caiu para os 75 000 $ antes do anúncio das tarifas do “Liberation Day”. Apesar das saídas no curto prazo, as posições on-chain continuam em tendência ascendente, com o IBIT ETF da BlackRock a deter sozinho 780 000 BTC, cerca de 60% do total de BTC em ETF spot.
Um regresso a entradas líquidas sustentadas sinalizaria estabilização deste canal, uma vez que a procura por ETF tem historicamente atuado como principal absorvedor de oferta quando aumenta o apetite pelo risco.

Fonte: Coin Metrics Network Data Pro
As tesourarias de ativos digitais (DAT) também revelam sinais de pressão. Com a correção dos preços, o valor das suas ações e participações em cripto comprime-se, pressionando o prémio face ao NAV que sustenta o seu ciclo de crescimento. Isto reduz a capacidade de angariar novo capital via emissão de ações ou dívida, limitando o aumento de cripto por ação. DAT mais pequenas e recentes são especialmente sensíveis a esta dinâmica, já que condições de mercado adversas tornam desfavoráveis o custo de aquisição e a valorização acionista para acumulação adicional.
A Strategy, o maior DAT atualmente, detém 649 870 BTC (~3,2% da oferta de Bitcoin), a um preço médio de 74 333 $. Como se observa no gráfico abaixo, a acumulação da Strategy acelerou de forma significativa quando o BTC valorizava e a avaliação acionista era forte, tendo abrandado recentemente, sem ser fonte de vendas ativas. Ainda assim, a Strategy mantém mais-valias latentes, com o preço de aquisição inferior ao valor de mercado atual.
A Strategy poderá enfrentar pressão caso os preços recuem mais ou devido a potenciais riscos de exclusão de índices, mas uma inversão das condições de mercado pode reforçar o balanço e as avaliações, restaurando um contexto favorável a uma acumulação mais agressiva por parte das DAT.

Fonte: Strategy & Bitbo Treasuries
Esta evolução é consistente com as tendências de rentabilidade on-chain. O SOPR dos detentores de curto prazo (< 155 dias) caiu para perdas realizadas de cerca de 23%, um nível que historicamente reflete pressão de capitulação no segmento mais sensível ao preço. Os detentores de longo prazo mantêm-se, em média, em lucro, mas o SOPR revela um ligeiro aumento na distribuição, sinalizando tomadas de lucro seletivas. Uma recuperação do SOPR de curto prazo acima de 1,0, a par de uma desaceleração da distribuição de longo prazo, sugeriria que o mercado está a recuperar estabilidade.
A cascata de liquidações de 10 de outubro marcou o início de um ciclo de desalavancagem em múltiplas camadas nos futuros, DeFi e alavancagem suportada por stablecoins, cujos efeitos ainda se fazem sentir nos mercados cripto.
Em poucas horas, os futuros perpétuos registaram as maiores liquidações forçadas de sempre, eliminando mais de 30% do open interest acumulado ao longo de vários meses. Altcoins e plataformas com maior presença retalhista, como Hyperliquid, Binance e Bybit, sofreram as maiores quedas, em linha com os segmentos onde a alavancagem era mais agressiva antes do evento. Como se observa, o open interest mantém-se significativamente abaixo dos máximos pré-crash (acima de 90 mil milhões $), tendo recuado ligeiramente após o evento. Isto indica uma purga da alavancagem no sistema, à medida que o mercado estabiliza e se ajusta.
As taxas de financiamento também abrandaram neste período, refletindo um reset do apetite pelo risco do lado longo. O financiamento do BTC tem oscilado em torno do neutro ou ligeiramente negativo, em linha com um mercado que ainda não recuperou convicção direcional.

Fonte: Coin Metrics Market Data Pro
Os mercados de crédito DeFi também atravessaram uma fase gradual de desalavancagem. Os empréstimos ativos na Aave V3 têm vindo a cair desde o pico de finais de setembro, com os mutuários a reduzirem a alavancagem e a amortizarem dívida, num contexto de menor apetite pelo risco e reavaliação de colateral. A retração foi mais acentuada no crédito indexado a stablecoins, agravada pela desindexação do USDe da Ethena, que provocou uma queda de 65% nos empréstimos em USDe e um desmonte mais amplo da alavancagem sintética em dólares.
O crédito baseado em ETH também recuou, com empréstimos em WETH e tokens de staking líquido (LST) a caírem cerca de 35–40%, refletindo menor recurso a estratégias de colateral com rendimento.
A liquidez dos mercados spot mantém-se reduzida após a cascata de liquidações de 10 de outubro. Nas principais bolsas, a profundidade do topo do livro de ordens (±2%) para BTC, ETH e SOL permanece 30–40% abaixo dos níveis de início de outubro, mostrando que a liquidez ainda não acompanhou a recuperação dos preços. Com menos ordens de compra e venda em espera, os mercados continuam mais frágeis, e pequenos picos de atividade podem provocar movimentos de preço desproporcionados, aumentando a volatilidade e amplificando o impacto das vendas forçadas.
A liquidez é ainda mais débil nas altcoins. Os livros de ordens fora dos principais ativos sofreram uma queda mais acentuada e persistente, refletindo a contínua aversão ao risco e menor atividade de market making. Uma melhoria generalizada na liquidez spot ajudaria a reduzir o impacto nos preços e a estabilizar as condições de mercado, mas, por agora, a profundidade continua a ser um dos sinais mais claros de stress no sistema.

Fonte: Coin Metrics Market Data Pro
Os mercados de ativos digitais atravessam uma recalibração generalizada, marcada por uma procura menos robusta de ETF e DAT, um reset da alavancagem em futuros e DeFi, e uma liquidez spot ainda reduzida. Estas dinâmicas penalizam os preços, mas também deixam o sistema mais saudável, menos alavancado, com posições mais neutras e cada vez mais ancorado em fundamentos.
Em simultâneo, o contexto macroeconómico permanece desafiante: a fraqueza nas tecnológicas de IA, as expectativas de cortes de taxas em mudança e a aversão ao risco generalizada têm limitado o apetite. Uma recuperação sustentada dos principais canais de procura, entradas em ETF, acumulação de DAT, crescimento da oferta de stablecoins e uma retoma da liquidez spot constituiriam a base para estabilizar e inverter o mercado. Até lá, o mercado continuará condicionado pela tensão entre o contexto macro de aversão ao risco e a estrutura interna do mercado cripto.





