11 de dezembro de 2025, a Depositary Trust & Clearing Corporation (DTCC) nos Estados Unidos recebeu uma “Carta de Isenção” (No-Action Letter) da SEC, autorizando a tokenização de seus ativos de securities sob custódia na blockchain.
Assim que a notícia foi divulgada, o setor celebrou, tornando-se o centro das atenções — ativos sob custódia no valor de 99 trilhões de dólares estão prestes a serem tokenizados, e a porta para a tokenização de ações americanas finalmente se abriu.
No entanto, ao ler cuidadosamente o documento, percebe-se um detalhe crucial: a DTCC está tokenizando “direitos de securities” (security entitlements), e não as ações propriamente ditas.
Essa distinção soa como uma terminologia jurídica minuciosa.
Na prática, ela revela duas rotas distintas na área de tokenização de securities, e o jogo de forças que ocorre por trás de cada uma delas.
Quem é o verdadeiro titular das ações americanas?
Para entender esse jogo, é preciso primeiro compreender um fato contra a intuição: no mercado aberto dos EUA, os investidores nunca “possuíram” realmente as ações.
Antes de 1973, as negociações de ações dependiam de certificados físicos. Após a transação, as partes trocavam os certificados físicos, assinavam e endossavam, e enviavam ao agente de transferência para registro de propriedade. Esse processo funcionava bem em tempos de baixo volume de negociações.
Porém, no final dos anos 60, o volume diário de negociações de ações nos EUA saltou de três a quatro milhões de ações para mais de dez milhões, quase levando o sistema à falência. Corretoras acumulavam milhões de certificados pendentes, muitos se perdiam, eram roubados ou falsificados. Wall Street chamou esse período de “Crise do Papel” (Paperwork Crisis).
A DTC surgiu como uma solução para essa crise. Sua ideia central era simples: armazenar todos os certificados de ações em um único local, e, nas negociações futuras, fazer apenas registros digitais no livro razão, eliminando a necessidade de movimentar fisicamente os certificados.
Para isso, foi criada uma entidade de custódia chamada Cede & Co., na qual quase todas as ações de empresas listadas eram registradas em nome dessa entidade.
Dados oficiais de 1998 indicam que a Cede & Co. detinha a propriedade legal de 83% das ações públicas emitidas nos EUA.
O que isso significa? Quando você vê na sua conta de corretora “possuindo 100 ações da Apple”, na lista de acionistas da Apple, o nome registrado é Cede & Co.
O que você possui é uma espécie de contrato de direitos de securities — um direito de reivindicar economicamente as 100 ações junto à corretora, que por sua vez pode reivindicar isso junto à clearing house, e esta, por sua vez, pode reivindicar ao DTCC. Trata-se de uma cadeia de direitos encadeados, e não de uma propriedade direta.
Esse sistema de “posse indireta” (indirect holding system) funciona há mais de cinquenta anos. Ele eliminou a crise do papel, sustentou a liquidação diária de trilhões de dólares em negociações, mas ao custo de uma camada de intermediários entre o investidor e o ativo que possui.
A escolha da DTCC: modernizar a infraestrutura, mantendo a arquitetura
Com esse contexto, fica claro qual é o limite da tokenização proposta pela DTCC.
De acordo com a carta de isenção da SEC e as declarações públicas da DTCC, o serviço de tokenização é voltado para “participantes (Participants) que detêm direitos de securities na DTC”. Participantes são corretoras de liquidação e bancos que têm conexão direta com a DTCC — atualmente, apenas algumas centenas de instituições nos EUA possuem essa qualificação.
Investidores comuns não podem usar diretamente o serviço de tokenização da DTCC.
Os “tokens de direitos de securities” tokenizados circularão na blockchain aprovada pela DTCC, mas esses tokens representam ainda um direito contratual sobre o ativo subjacente, e não a propriedade direta. As ações continuam registradas em nome de Cede & Co., essa parte não muda.
Trata-se de uma atualização na infraestrutura, não de uma reconstrução da arquitetura. O objetivo é melhorar a eficiência do sistema existente, não substituí-lo. A DTCC listou claramente alguns benefícios potenciais em seus documentos:
Primeiro, liquidez de garantias: no sistema tradicional, a movimentação de securities entre contas exige esperar o ciclo de liquidação, com capital bloqueado. Com a tokenização, a transferência de direitos pode ocorrer quase em tempo real entre participantes, liberando capital congelado.
Segundo, simplificação de reconciliações: atualmente, a DTCC, corretoras de liquidação e corretoras de varejo mantêm livros-razão independentes, com grande volume de reconciliações diárias. Registros na blockchain podem se tornar uma fonte única de verdade compartilhada.
Terceiro, preparação para inovações futuras: a DTCC menciona que, no futuro, os direitos tokenizados podem ter valor de liquidação ou pagar dividendos em stablecoins, mas isso requer autorização regulatória adicional.
É importante destacar que a DTCC afirma que esses tokens não entrarão no ecossistema DeFi, não substituirão os participantes atuais, e não alterarão o registro de acionistas.
Em outras palavras, ela não pretende desafiar ninguém; essa abordagem tem sua lógica.
A compensação multilateral (multilateral netting) é uma vantagem central do sistema de liquidação de securities atual. Com o volume diário de trilhões de dólares, a liquidação final, após a compensação do NSCC, requer movimentar apenas algumas centenas de milhões de dólares. Essa eficiência só é possível com uma arquitetura centralizada.
Como uma infraestrutura financeira de importância sistêmica, a responsabilidade principal da DTCC é manter a estabilidade, não inovar.
A vertente do posse direta: do token às ações físicas
Enquanto a DTCC avança com cautela na atualização, uma outra rota já começa a se desenvolver.
Em 3 de setembro de 2025, a Galaxy Digital anunciou que se tornou a primeira empresa listada na Nasdaq a tokenizar ações registradas na SEC, na blockchain principal. Em parceria com a Superstate, as ações ordinárias Classe A da Galaxy agora podem ser possuídas e transferidas na blockchain do Solana em forma de tokens.
A principal diferença é que esses tokens representam ações reais, e não um direito de reivindicação sobre elas. Como agente de transferência registrado na SEC, a Superstate atualiza em tempo real o registro de acionistas quando os tokens são transferidos na blockchain.
O nome do detentor do token aparece diretamente no registro de acionistas da Galaxy — e Cede & Co. não faz parte dessa cadeia.
Essa é uma posse realmente direta. O investidor não possui um direito contratual, mas uma propriedade.
Em dezembro de 2025, a Securitize anunciou que, no primeiro trimestre de 2026, lançará um serviço de tokenização de ações com “transações totalmente na blockchain e em conformidade”. Diferente de muitas ofertas no mercado que dependem de derivativos, SPV ou estruturas offshore, a Securitize enfatiza que seus tokens serão “ações verdadeiras, reguladas, emitidas na blockchain, registradas diretamente no livro de acionistas do emissor”.
O modelo da Securitize vai além: suporta não só a posse na blockchain, mas também a negociação nela.
Durante o horário de mercado, o preço é ancorado na melhor cotação nacional (NBBO); fora do horário, um Automated Market Maker (AMM) ajusta os preços dinamicamente com base na oferta e demanda na cadeia. Isso significa uma janela de negociação teórica 24/7.
Essa rota representa uma visão alternativa: usar a blockchain como camada nativa de infraestrutura de securities, e não como uma camada adicional ao sistema existente.
Duas rotas, dois futuros
Essa não é uma disputa de rotas tecnológicas, mas um jogo de lógicas institucionais.
A rota da DTCC representa uma melhoria gradual, reconhecendo a racionalidade do sistema atual — a eficiência da compensação multilateral, a mitigação de riscos do contraparte central, a maturidade do quadro regulatório — apenas usando tecnologia blockchain para tornar esse sistema mais rápido e transparente.
O papel do intermediário não desaparece, apenas muda de forma de registro.
A rota do posse direta representa uma transformação estrutural — questiona a necessidade do sistema de posse indireta: se a blockchain pode fornecer registros de propriedade imutáveis, por que ainda precisar de camadas de intermediários? Se o investidor pode guardar seus ativos, por que transferir a propriedade para Cede & Co.?
Cada rota tem seus trade-offs.
(Tradução de Chuk Okpalugo)
A posse direta oferece autonomia: autogestão, transferências ponto a ponto, compatibilidade com protocolos DeFi. Mas o custo é liquidez dispersa e perda de eficiência de netting. Se cada transação exigir liquidação total na cadeia, sem a compensação de um agente central, o uso de capital aumenta significativamente.
Além disso, a posse direta transfere mais riscos operacionais ao investidor — perda de chaves privadas, roubo de carteiras — riscos que, no sistema tradicional, são cobertos por intermediários, mas que agora recaem sobre o próprio usuário.
A posse indireta mantém a eficiência do sistema: economia de escala na liquidação centralizada, quadro regulatório maduro, operação familiar a investidores institucionais. Mas o custo é que o investidor só pode exercer seus direitos por meio de intermediários. Propostas, votações, comunicação direta com o emissor — esses direitos, em teoria, pertencem ao acionista, mas na prática precisam passar por múltiplos intermediários.
Vale notar que a SEC mantém uma postura aberta às duas rotas.
Na declaração de 11 de dezembro sobre a carta de isenção da DTCC, a comissária Hester Peirce afirmou claramente: “O modelo de direitos de securities tokenizados da DTC é um passo promissor nesta jornada, mas outros participantes do mercado estão explorando rotas experimentais diferentes… Alguns emissores já começaram a tokenizar seus securities, o que pode facilitar a posse e negociação direta pelos investidores, sem intermediários.”
O sinal dos reguladores é claro: não se trata de uma escolha binária, mas de permitir que o mercado decida qual modelo atende melhor a diferentes necessidades.
Estratégias defensivas dos intermediários financeiros
Como os intermediários tradicionais devem reagir a essa disputa de rotas?
Primeiro, corretoras de liquidação e custodiantes precisam refletir:
No modelo da DTCC, você é indispensável ou substituível? Se os direitos tokenizados podem ser transferidos diretamente entre participantes, as taxas de custódia, transferência e reconciliação que as corretoras cobram ainda fazem sentido? Instituições que adotarem cedo a tokenização da DTCC podem obter vantagem competitiva, mas, a longo prazo, esse serviço pode se tornar padrão e commoditizado.
Segundo, os corretoras de varejo enfrentam desafios mais complexos:
No modelo da DTCC, seu papel é consolidado — investidores comuns ainda acessam o mercado via corretoras. Mas a expansão do posse direta pode erodir essa vantagem. Se os investidores puderem guardar suas ações registradas na SEC e negociá-las em plataformas blockchain conformes, qual será o valor agregado das corretoras? Talvez apenas serviços: consultoria regulatória, planejamento tributário, gestão de portfólio — funções de alto valor que não podem ser substituídas por contratos inteligentes.
Terceiro, os agentes de transferência podem passar por uma transformação histórica:
Na estrutura tradicional, o agente de transferência é uma função discreta de back-office, responsável por manter o registro de acionistas. Na posse direta, esse papel se torna uma conexão crítica entre emissor e investidor. Superstate e Securitize possuem licenças de agentes de transferência registradas na SEC, o que não é por acaso. Controlar a atualização do registro de acionistas é controlar a entrada na infraestrutura de posse direta.
Quarto, gestores de ativos precisam ficar atentos à concorrência trazida pela composabilidade:
Se ações tokenizadas podem servir como garantia em protocolos de empréstimo na cadeia, os negócios tradicionais de financiamento garantido podem ser impactados. Se os investidores puderem negociar 24/7 em AMMs e liquidar instantaneamente, o arbitragem de capital durante o ciclo T+1 desaparece. Essas mudanças não acontecem de uma hora para outra, mas gestores de ativos devem avaliar antecipadamente sua dependência na eficiência de liquidação.
O ponto de convergência das duas rotas
A transformação na infraestrutura financeira nunca acontece de uma noite para outra. A crise do papel dos anos 1970 levou ao sistema de posse indireta, e, desde a criação da DTC até a Cede & Co. possuir 83% das ações americanas, esse sistema levou mais de duas décadas para se consolidar. A SWIFT, criada em 1973, também ainda está em processo de reestruturação de pagamentos internacionais.
No curto prazo, as duas rotas crescerão em seus territórios:
Os serviços institucionais da DTCC irão primeiro penetrar em gestão de garantias, empréstimos de securities, subscrição e resgate de ETFs — mercados de atacado mais sensíveis à eficiência de liquidação.
A posse direta, por sua vez, começará na periferia: usuários nativos de criptografia, emissores menores, jurisdições com sandbox regulatório.
No longo prazo, as duas rotas podem convergir. Quando a circulação de direitos tokenizados atingir escala suficiente, e a estrutura regulatória de posse direta estiver madura, os investidores poderão ter sua primeira verdadeira escolha — desfrutar da eficiência de liquidação do sistema DTCC ou optar por autogestão na cadeia, recuperando controle direto sobre seus ativos.
Essa possibilidade de escolha é, ela mesma, uma mudança.
Desde 1973, os investidores comuns nunca tiveram essa opção: ao comprar ações, automaticamente entram na posse indireta, com Cede & Co. como proprietário legal, e o investidor como beneficiário final da cadeia de direitos. Não é uma questão de escolha, mas de caminho único.
Cede & Co. ainda registra a maioria das ações públicas americanas. Essa proporção pode começar a diminuir, ou permanecer por muito tempo. Mas, após cinquenta anos, uma nova rota finalmente está pronta.
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Análise aprofundada: O jogo de duas vias por trás da tokenização de ações da DTCC
Escrever: Espinafre Espinafre
11 de dezembro de 2025, a Depositary Trust & Clearing Corporation (DTCC) nos Estados Unidos recebeu uma “Carta de Isenção” (No-Action Letter) da SEC, autorizando a tokenização de seus ativos de securities sob custódia na blockchain.
Assim que a notícia foi divulgada, o setor celebrou, tornando-se o centro das atenções — ativos sob custódia no valor de 99 trilhões de dólares estão prestes a serem tokenizados, e a porta para a tokenização de ações americanas finalmente se abriu.
No entanto, ao ler cuidadosamente o documento, percebe-se um detalhe crucial: a DTCC está tokenizando “direitos de securities” (security entitlements), e não as ações propriamente ditas.
Essa distinção soa como uma terminologia jurídica minuciosa.
Na prática, ela revela duas rotas distintas na área de tokenização de securities, e o jogo de forças que ocorre por trás de cada uma delas.
Para entender esse jogo, é preciso primeiro compreender um fato contra a intuição: no mercado aberto dos EUA, os investidores nunca “possuíram” realmente as ações.
Antes de 1973, as negociações de ações dependiam de certificados físicos. Após a transação, as partes trocavam os certificados físicos, assinavam e endossavam, e enviavam ao agente de transferência para registro de propriedade. Esse processo funcionava bem em tempos de baixo volume de negociações.
Porém, no final dos anos 60, o volume diário de negociações de ações nos EUA saltou de três a quatro milhões de ações para mais de dez milhões, quase levando o sistema à falência. Corretoras acumulavam milhões de certificados pendentes, muitos se perdiam, eram roubados ou falsificados. Wall Street chamou esse período de “Crise do Papel” (Paperwork Crisis).
A DTC surgiu como uma solução para essa crise. Sua ideia central era simples: armazenar todos os certificados de ações em um único local, e, nas negociações futuras, fazer apenas registros digitais no livro razão, eliminando a necessidade de movimentar fisicamente os certificados.
Para isso, foi criada uma entidade de custódia chamada Cede & Co., na qual quase todas as ações de empresas listadas eram registradas em nome dessa entidade.
Dados oficiais de 1998 indicam que a Cede & Co. detinha a propriedade legal de 83% das ações públicas emitidas nos EUA.
O que isso significa? Quando você vê na sua conta de corretora “possuindo 100 ações da Apple”, na lista de acionistas da Apple, o nome registrado é Cede & Co.
O que você possui é uma espécie de contrato de direitos de securities — um direito de reivindicar economicamente as 100 ações junto à corretora, que por sua vez pode reivindicar isso junto à clearing house, e esta, por sua vez, pode reivindicar ao DTCC. Trata-se de uma cadeia de direitos encadeados, e não de uma propriedade direta.
Esse sistema de “posse indireta” (indirect holding system) funciona há mais de cinquenta anos. Ele eliminou a crise do papel, sustentou a liquidação diária de trilhões de dólares em negociações, mas ao custo de uma camada de intermediários entre o investidor e o ativo que possui.
Com esse contexto, fica claro qual é o limite da tokenização proposta pela DTCC.
De acordo com a carta de isenção da SEC e as declarações públicas da DTCC, o serviço de tokenização é voltado para “participantes (Participants) que detêm direitos de securities na DTC”. Participantes são corretoras de liquidação e bancos que têm conexão direta com a DTCC — atualmente, apenas algumas centenas de instituições nos EUA possuem essa qualificação.
Investidores comuns não podem usar diretamente o serviço de tokenização da DTCC.
Os “tokens de direitos de securities” tokenizados circularão na blockchain aprovada pela DTCC, mas esses tokens representam ainda um direito contratual sobre o ativo subjacente, e não a propriedade direta. As ações continuam registradas em nome de Cede & Co., essa parte não muda.
Trata-se de uma atualização na infraestrutura, não de uma reconstrução da arquitetura. O objetivo é melhorar a eficiência do sistema existente, não substituí-lo. A DTCC listou claramente alguns benefícios potenciais em seus documentos:
Primeiro, liquidez de garantias: no sistema tradicional, a movimentação de securities entre contas exige esperar o ciclo de liquidação, com capital bloqueado. Com a tokenização, a transferência de direitos pode ocorrer quase em tempo real entre participantes, liberando capital congelado.
Segundo, simplificação de reconciliações: atualmente, a DTCC, corretoras de liquidação e corretoras de varejo mantêm livros-razão independentes, com grande volume de reconciliações diárias. Registros na blockchain podem se tornar uma fonte única de verdade compartilhada.
Terceiro, preparação para inovações futuras: a DTCC menciona que, no futuro, os direitos tokenizados podem ter valor de liquidação ou pagar dividendos em stablecoins, mas isso requer autorização regulatória adicional.
É importante destacar que a DTCC afirma que esses tokens não entrarão no ecossistema DeFi, não substituirão os participantes atuais, e não alterarão o registro de acionistas.
Em outras palavras, ela não pretende desafiar ninguém; essa abordagem tem sua lógica.
A compensação multilateral (multilateral netting) é uma vantagem central do sistema de liquidação de securities atual. Com o volume diário de trilhões de dólares, a liquidação final, após a compensação do NSCC, requer movimentar apenas algumas centenas de milhões de dólares. Essa eficiência só é possível com uma arquitetura centralizada.
Como uma infraestrutura financeira de importância sistêmica, a responsabilidade principal da DTCC é manter a estabilidade, não inovar.
Enquanto a DTCC avança com cautela na atualização, uma outra rota já começa a se desenvolver.
Em 3 de setembro de 2025, a Galaxy Digital anunciou que se tornou a primeira empresa listada na Nasdaq a tokenizar ações registradas na SEC, na blockchain principal. Em parceria com a Superstate, as ações ordinárias Classe A da Galaxy agora podem ser possuídas e transferidas na blockchain do Solana em forma de tokens.
A principal diferença é que esses tokens representam ações reais, e não um direito de reivindicação sobre elas. Como agente de transferência registrado na SEC, a Superstate atualiza em tempo real o registro de acionistas quando os tokens são transferidos na blockchain.
O nome do detentor do token aparece diretamente no registro de acionistas da Galaxy — e Cede & Co. não faz parte dessa cadeia.
Essa é uma posse realmente direta. O investidor não possui um direito contratual, mas uma propriedade.
Em dezembro de 2025, a Securitize anunciou que, no primeiro trimestre de 2026, lançará um serviço de tokenização de ações com “transações totalmente na blockchain e em conformidade”. Diferente de muitas ofertas no mercado que dependem de derivativos, SPV ou estruturas offshore, a Securitize enfatiza que seus tokens serão “ações verdadeiras, reguladas, emitidas na blockchain, registradas diretamente no livro de acionistas do emissor”.
O modelo da Securitize vai além: suporta não só a posse na blockchain, mas também a negociação nela.
Durante o horário de mercado, o preço é ancorado na melhor cotação nacional (NBBO); fora do horário, um Automated Market Maker (AMM) ajusta os preços dinamicamente com base na oferta e demanda na cadeia. Isso significa uma janela de negociação teórica 24/7.
Essa rota representa uma visão alternativa: usar a blockchain como camada nativa de infraestrutura de securities, e não como uma camada adicional ao sistema existente.
Essa não é uma disputa de rotas tecnológicas, mas um jogo de lógicas institucionais.
A rota da DTCC representa uma melhoria gradual, reconhecendo a racionalidade do sistema atual — a eficiência da compensação multilateral, a mitigação de riscos do contraparte central, a maturidade do quadro regulatório — apenas usando tecnologia blockchain para tornar esse sistema mais rápido e transparente.
O papel do intermediário não desaparece, apenas muda de forma de registro.
A rota do posse direta representa uma transformação estrutural — questiona a necessidade do sistema de posse indireta: se a blockchain pode fornecer registros de propriedade imutáveis, por que ainda precisar de camadas de intermediários? Se o investidor pode guardar seus ativos, por que transferir a propriedade para Cede & Co.?
Cada rota tem seus trade-offs.
(Tradução de Chuk Okpalugo)
A posse direta oferece autonomia: autogestão, transferências ponto a ponto, compatibilidade com protocolos DeFi. Mas o custo é liquidez dispersa e perda de eficiência de netting. Se cada transação exigir liquidação total na cadeia, sem a compensação de um agente central, o uso de capital aumenta significativamente.
Além disso, a posse direta transfere mais riscos operacionais ao investidor — perda de chaves privadas, roubo de carteiras — riscos que, no sistema tradicional, são cobertos por intermediários, mas que agora recaem sobre o próprio usuário.
A posse indireta mantém a eficiência do sistema: economia de escala na liquidação centralizada, quadro regulatório maduro, operação familiar a investidores institucionais. Mas o custo é que o investidor só pode exercer seus direitos por meio de intermediários. Propostas, votações, comunicação direta com o emissor — esses direitos, em teoria, pertencem ao acionista, mas na prática precisam passar por múltiplos intermediários.
Vale notar que a SEC mantém uma postura aberta às duas rotas.
Na declaração de 11 de dezembro sobre a carta de isenção da DTCC, a comissária Hester Peirce afirmou claramente: “O modelo de direitos de securities tokenizados da DTC é um passo promissor nesta jornada, mas outros participantes do mercado estão explorando rotas experimentais diferentes… Alguns emissores já começaram a tokenizar seus securities, o que pode facilitar a posse e negociação direta pelos investidores, sem intermediários.”
O sinal dos reguladores é claro: não se trata de uma escolha binária, mas de permitir que o mercado decida qual modelo atende melhor a diferentes necessidades.
Como os intermediários tradicionais devem reagir a essa disputa de rotas?
Primeiro, corretoras de liquidação e custodiantes precisam refletir:
No modelo da DTCC, você é indispensável ou substituível? Se os direitos tokenizados podem ser transferidos diretamente entre participantes, as taxas de custódia, transferência e reconciliação que as corretoras cobram ainda fazem sentido? Instituições que adotarem cedo a tokenização da DTCC podem obter vantagem competitiva, mas, a longo prazo, esse serviço pode se tornar padrão e commoditizado.
Segundo, os corretoras de varejo enfrentam desafios mais complexos:
No modelo da DTCC, seu papel é consolidado — investidores comuns ainda acessam o mercado via corretoras. Mas a expansão do posse direta pode erodir essa vantagem. Se os investidores puderem guardar suas ações registradas na SEC e negociá-las em plataformas blockchain conformes, qual será o valor agregado das corretoras? Talvez apenas serviços: consultoria regulatória, planejamento tributário, gestão de portfólio — funções de alto valor que não podem ser substituídas por contratos inteligentes.
Terceiro, os agentes de transferência podem passar por uma transformação histórica:
Na estrutura tradicional, o agente de transferência é uma função discreta de back-office, responsável por manter o registro de acionistas. Na posse direta, esse papel se torna uma conexão crítica entre emissor e investidor. Superstate e Securitize possuem licenças de agentes de transferência registradas na SEC, o que não é por acaso. Controlar a atualização do registro de acionistas é controlar a entrada na infraestrutura de posse direta.
Quarto, gestores de ativos precisam ficar atentos à concorrência trazida pela composabilidade:
Se ações tokenizadas podem servir como garantia em protocolos de empréstimo na cadeia, os negócios tradicionais de financiamento garantido podem ser impactados. Se os investidores puderem negociar 24/7 em AMMs e liquidar instantaneamente, o arbitragem de capital durante o ciclo T+1 desaparece. Essas mudanças não acontecem de uma hora para outra, mas gestores de ativos devem avaliar antecipadamente sua dependência na eficiência de liquidação.
A transformação na infraestrutura financeira nunca acontece de uma noite para outra. A crise do papel dos anos 1970 levou ao sistema de posse indireta, e, desde a criação da DTC até a Cede & Co. possuir 83% das ações americanas, esse sistema levou mais de duas décadas para se consolidar. A SWIFT, criada em 1973, também ainda está em processo de reestruturação de pagamentos internacionais.
No curto prazo, as duas rotas crescerão em seus territórios:
Os serviços institucionais da DTCC irão primeiro penetrar em gestão de garantias, empréstimos de securities, subscrição e resgate de ETFs — mercados de atacado mais sensíveis à eficiência de liquidação.
A posse direta, por sua vez, começará na periferia: usuários nativos de criptografia, emissores menores, jurisdições com sandbox regulatório.
No longo prazo, as duas rotas podem convergir. Quando a circulação de direitos tokenizados atingir escala suficiente, e a estrutura regulatória de posse direta estiver madura, os investidores poderão ter sua primeira verdadeira escolha — desfrutar da eficiência de liquidação do sistema DTCC ou optar por autogestão na cadeia, recuperando controle direto sobre seus ativos.
Essa possibilidade de escolha é, ela mesma, uma mudança.
Desde 1973, os investidores comuns nunca tiveram essa opção: ao comprar ações, automaticamente entram na posse indireta, com Cede & Co. como proprietário legal, e o investidor como beneficiário final da cadeia de direitos. Não é uma questão de escolha, mas de caminho único.
Cede & Co. ainda registra a maioria das ações públicas americanas. Essa proporção pode começar a diminuir, ou permanecer por muito tempo. Mas, após cinquenta anos, uma nova rota finalmente está pronta.